Por que, e de qual maneira, a crítica genética pode ser uma forma de leitura  reveladora no processo tradutório de um texto literário? É a pergunta que tentamos responder ao longo de um pesquisa, iniciada em 2005, para demonstrar que o processo tradutório é um processo criativo remetendo ao ato de escrever, isto é, ao ato de criar um discurso próprio a partir de um discurso alheio. Esta criação do discurso, representada pelo “fazer”, pelo “escrever” da tradução em processo, não é uma simples técnica lingüística de passagem de uma língua para outra, é uma escritura, ou uma (re)escritura, oriunda do espaço recôndito do pensamento em criação. Partimos do princípio de que "traduire n'est traduire que quand traduire est un laboratoire d'écrire" (MESCHONNIC,1999, p.459)e que “traduire la littérature comme tenter de la comprendre génétiquement à partir de ses premières empreintes ou de ses balbutiements, c'est nécessairement et en bien des sens la récrire" (BOURJEA, 1995, p.7).  Quando ele diz que  traduzir é um laboratório do escrever, Meschonnic situa a relação imprescindível e recôndita entre o ato de traduzir e o ato de escrever na invenção do discurso. Portanto, é o discurso que deve ser traduzido posto que ele é invenção do escritor, e, ele deve ser traduzido em  um discurso, que será invenção do tradutor. Corrobora esse pensamente Haroldo de Campos quando ele diz que ”tradução  de textos criativos será sempre recriação, ou criação paralela...”

Penetramos no laboratório do escrever pela abordagem genética do prototexto do texto a ser traduzido por pensarmos que a crítica genética tem um papel importante a desenvolver no campo da tradução. Ela nos aparece como uma chave na tentativa de rever o pressuposto, dizendo que, por definição, toda tradução é uma “má” tradução, pois a tradução perfeita, que seria o original redobrado, não existe. Conseqüentemente, perdura uma tendência a avaliar com ar de suspeita o texto traduzido e o tradutor. Analisar, quando possível, o manuscrito do texto a traduzir como trabalho preparatório à tradução é procurar o que ele faz e de qual maneira. Todo nosso trabalho de pesquisa está embasado na procura do estabelecimento de uma interdisciplinaridade entre crítica genética e tradução literária. O manuscrito é a cena da escritura, onde, segundo Valéry, assistimos à passagem do descontínuo do pensamento interiorizado ao contínuo do pensamento exteriorizado. Na perspectiva valeriana, somente no manuscrito, e na sua "leitura", é possível aproximar-se da "pure saisie du sensible verbal", da "instance singulière du discours". Contudo, ao ler com os olhos, só se capta a inércia do escrito. É preciso ler com o ouvido. Nesse ponto, ele encontra Meschonnic, que salienta a necessidade de ler com o ouvido, ou seja, ativar o ouvido interno do leitor para escutar a voz do escrito. De certa forma, é procurar uma voz enunciativa para fazer reviver a linguagem tal como a viveu o escritor no seu ato escritural. Entendemos que, para Meschonnic, é esse movimento, essa oralidade, que deve ser traduzida. Entendemos, também, que somente o manuscrito pode abrir-nos esse mundo.

O laboratório do escritor, e do tradutor, é um espaço mítico em que se dá a alquimia da criação, onde os estados inacessíveis do texto em devir se sucedem na passagem do pensamento para a escritura, que Valéry, como Proust, entre outros, chamam de tradução. Vários escritores, conscientes da peculiaridade deste trabalho em desenvolvimento, publicaram reflexões, análises e comentários sobre o processo de nascimento de suas produções. Louis Aragon explicava como nasciam os incipit dos seus romances. Francis Ponge publicava dossiês preparatórios, manuscritos de trabalho e outros documentos ligados à gênese de sua obra2. Por exemplo, o poema Le Pré ou La table cujo material genético foi traduzido pelos professores Neis e Peterson. Isto demonstra que, para esses escritores, tudo o que foi escrito anteriormente ao texto publicado tem valor estético. Para Ponge, “esses esboços e rascunhos marcam o nascimento de um novo gênero literário.” (PONGE, 1964, p. 36)

Sobre a crítica genética  Peterson diz o seguinte :

Não se trata absolutamente de negar o aporte inestimável dos trabalhos sobre a gênese de Ponge, não só por esclarecerem camadas obscuras da obra e seus processos de invenção, de «flocuação», mas igualmente por permitirem, sem dúvida, compreender-se melhor no futuro sua inscrição na história da estética, bem como na história literária e cultural, francesa e mundial. (NEIS, PETERSON, 2002, p.110)

Parece-nos que a abordagem genética não visa a esclarecer as camadas obscuras do escrito, ela visa a tentar entender o processo dinâmico da escritura. A critica genética debruça-se sobre, e dentro, de um movimento e não sobre a imobilidade de um produto fixado. Não se trata de uma análise textual que, em uma visada tradutória, seria, apenas, mais uma abordagem semântica do texto fonte. Meschonnic esclarece o contexto quando ele refere-se ao “rôle unique, et méconnu, de la traduction comme révélateur de la pensée du langage et de la littérature [...]” (MESCHONNIC, 1999, p.10), e diz que a tradução pertence à teoria da linguagem, pois é um ato de linguagem. É neste sentido que ela se emancipa do texto fonte e adquire um estatuto literário independente, deixando de ser uma mera copia, inferior, por definição ao quê se costuma  caracterizar de "original". Ela é literatura “produit de l'écriture lu et transformé dans et par l'idéologie” (MESCHONNIC, 1973, p. 25)

É a partir do prototexto, atestando o movimento  escritural de um texto em devir, que o geneticista procura reconstituir o percurso criativo do escritor. Temos aí uma primeira fase, uma primeira “tradução”, ao passar do magma criativo em estado bruto ao magma criativo em estado organizado. Isto é, do empírico ao metódico,  adquirindo assim, o estatuto científico de prototexto.

  Não pretendemos insinuar que o tradutor deva ser também geneticista para que seu trabalho tenha êxito. Evidentemente, não se pode estabelecer um dossiê para todos os textos a serem traduzidos. Mas, quando for possível, o tradutor pode apoiar-se no dossiê sem tê-lo constituído, sem ter chegado à confecção de um prototexto.

 No entanto, é muito provável que o grau de penetração no movimento  da escritura alheia seja mais profundo quando o tradutor realizar e analisar o dossiê genético da obra a traduzir. O tradutor pode apropriar-se deste passeio pela criação alheia e colocar seus passos nos passos do autor. De um certo modo, ele refaz o «caminho» do escritor, retoma o seu procedimento, a sua maneira de escrever até penetrar no mesmo espaço literário e, então, no campo da criação, colocando o processo tradutório no mesmo registro que o processo  da criação literária.

Quando o material genético existe e é analisado, ele pode abrir a porta do universo criativo do autor escolhido. Isto nos permite dizer que o material genético de um texto traduzido nos leva ao universo criativo do tradutor.

Peter Bush3, durante uma palestra no Salão do Livro de Turino em maio de 2002, salientou o fato de o tradutor ser, ao mesmo tempo leitor e escritor e dirigiu uma crítica ao ensino da tradução que se limita à abordagem da teoria produzida pelos tradutólogos, julgada muito normativa. Ele revelou-se a favor de uma observação dos tradutores e dos seus manuscritos.

S´obstiner à ignorer la pratique et l´expérience réelle des traducteurs littéraires a quelque chose de pré-baconien. Une telle absence d´observation des traducteurs en chair et en os et de leurs manuscrits, de leur correspondance et de leurs parcours a de quoi troubler dans une discipline qui s´intitule elle-même «Translation Studies». (Traducteurs italiens, conservez-vous vos brouillons, existe-t-il des archives nationales qui cherchent à les acquerrir?) (TRANSLITTÉRATURE, p. 50)

Se um profissional desta importância, ele mesmo formador de tradutores, salienta como sendo necessário conservar e analisar os rascunhos dos tradutores, inscrevemo-nos nesta linha de pesquisa, pois é ela que fundamenta a relação tradutor-escritor e faz do tradutor um criador. Peter Bush continua sua intervenção afirmando que o tradutor deve possuir talentos excepcionais para a escritura; esse talento, é inato, portanto, nenhum curso é capaz de criá-lo e somente  limita-se a aperfeiçoá-lo.

Por outro lado, o Collège international des traducteurs littéraires d´Arles et Le centre d´études valéryennes de l´Université de Montpellier organizaram, em 1995, um colóquio intitulado “Génétique et Traduction”, a partir do pensamento de Valéry dizendo que o poeta é “une espèce singulière de traducteur” e que

Le travail de traduire, mené avec le souci d´une certaine approximation de la forme, nous fait en quelque manière chercher à mettre nos pas sur les vestiges de ceux de l´auteur…remonter à l´époque virtuelle de sa formation. (BOURJEA, 1995, p.6)

Tendo acesso  ao laboratório do autor, o tradutor conseguirá penetrar o processo de escritura alheia; conseguirá desconstruir este processo de criação para reconstruí-lo no seu discurso próprio, igualmente desenvolvido no laboratório da escritura em formação. Esse discurso será outro. O mesmo do outro. O outro do mesmo. Eis a dupla figura da tradução. Eis a dupla figura do texto literário:

Escrever o que quer que seja, desde o momento em que o ato de escrever exige reflexão, e não a inscrição maquinal e sem detenças de uma palavra interior toda espontânea, é um trabalho de tradução exatamente comparável àquele que opera a transmutação de um texto de uma língua em outra. (CAMPOS, 1996, p.201)

 As citações de Valéry vêm ilustrar a posição de Meschonnic a respeito da relação íntima entre escrever e traduzir. Temos, assim uma mise en abyme4 da tradução, pois escrever já é traduzir. Então : “a literatura e a tradução literária são práticas que podem esclarecer uma a outra” (CARVALHAL, 2003, p. 221) e “Revaloriser la traduction implique qu´elle soit une écriture. Sans quoi c'est une imposture.” (MESCHONNIC, 1999, p. 28)

O que um manuscrito faz e de que forma ele faz? Para tentar responder a essas perguntas analisamos os documentos de processo do conto inédito de Caio Fernando Abreu: Anotações para uma estória de amor. Três versões datilografadas e com marcas manuais de releitura compõem esse prototexto.

Perguntar o que um manuscrito faz é, em outras palavras, questionar-se sobre a sua performatividade. Para isso, retomamos o conceito desenvolvido pelo lingüista J.L. Austin: quando dizer é fazer5que ele aplicou a enunciados orais. Esse conceito foi posteriormente ampliado por Benveniste que se ocupou de estudar a performatividade do enunciado escrito. À diferencia da fala, o enunciado oral, em que enunciador, enunciação e enunciado coexistem no tempo único e indissociável do ato de linguagem, a escritura implica um diferido, uma dissociação. No escrito, a enunciação, em seu tempo, o ato de escrever, nunca mais se dará. Só perdura a sua marca, o enunciado, que é o próprio texto. Nos estudos genéticos essa marca é abordada na sua dimensão plena, na leitura estrelada do palimpsesto da criação, isto é, nos vários momentos e movimentos que aconteceram durante a escritura em processo. No texto publicado esse palimpsesto não é visível, apesar de sustentá-lo e conferir-lhe seu efeito, singular, pluri-dimensional e perene. O texto publicado há de adotar outra aparência, uma forma limpa, para possibilitar a leitura linear. Mas a linearidade dessa leitura não anula o seu efeito múltiplo. À metáfora do palimpsesto podemos justapor a do holograma6para caracterizar o texto publicado. De fato, tal o holograma que desvela suas imagens, e provoca seus efeitos em função da maneira de movimentá-lo, o texto publicado, em função de cada leitura, suscitará suas imagens e seus efeitos. Diríamos que o palimpsesto (no prototexto) congrega um fazer e que o holograma (no texto publicado) difrata esse fazer em efeito. Todavia, essa intuição não pretende afirmar que todos os movimentos escriturais, todas as rasuras, são identificáveis pelo leitor do texto publicado. De fato, eles permanecem como um não-sabido. Contudo, podemos dizer que o movimento dialético de inscrição e apagamento sucessivos dessas marcas, traduzindo a procura de uma forma, conferem ao enunciado final, uma capacidade de fazer algo, portanto, de produzir efeito. É essa forma que tentamos recriar no texto dito fixado, seguindo a afirmação de Ph. Willemart

O que está escondido sob a rasura, muito mais do que seu efeito – o texto visível – é frequentemente o ponto de partida do scriptor e assinala um não-dito do texto publicado. Por isto, sustentamos que o texto publicado é a metonímia do manuscrito (WILLEMART, 2005, p.20).

Na mesma perspectiva está Irène Fenoglio ao assertar

On écrit pour dire quelque chose. Ce «quelque chose» ne peut-être dit que dans un acte d'énonciation qui tend à produire un énoncé. Mais cet énoncé ne peut s'accomplir que par la  dimension de l'insu ; le «quelque chose» à dire se modifie au fur et à mesure qu'il est «défini», c'est-à-dire énoncé [...] (FENOGLIO, 2007, p. 144)

podemos acrescentar que, também, escreve-se para fazer algo.

Em nossa proposta de aproximar estudos genéticos e tradução literária, intuímos que um texto traduzido, cujo processo criativo não passou pela leitura do prototexto, tenderá a reconfigurar o texto fonte na pluri-dimensão de uma singularidade — a do tradutor — sem possibilidades, mesmo que parciais, de perenizar o máximo possível do efeito fonte. Contudo, defendemos que o texto traduzido há de ser recriação e reescritura o que torna, portanto, a presencia do tradutor no seu enunciado, fundamental e imprescindível, para que o texto traduzido produza, por sua vez, o conjunto de efeitos iniciais. Será pela passagem pelo estudo do prototexto do texto a ser traduzido que o tradutor poderá usar de toda a sua singularidade escritural a partir do conhecimento adquirido do não-sabido, no seu contato com o processo criativo do autor que ele traduz. Assim, ele alcançará a forma de tradução-texto7, tal a define Henri Meschonnic, por ele ter tido acesso ao fazer do autor, ao processo de textualização de seu enunciado. Nossa prática tradutória, na sua passagem pelos estudos genéticos, e, considerando o fazer próprio do tradutor, tenta perenizar um fazer.

Não é possível reconstituir um contexto de enunciação escrita, dizer se o autor estava sozinho, triste, alegre, etc. Esse contexto enunciativo não é mais visível, por isso não pode servir de suporte para interpretar o quê o autor quis dizer. Pode-se unicamente constatar o que está dito, escrito. Geralmente, a tradição opõe, no enunciado escrito, a letra e o espírito. Isto é, signo e sentido. Dicotomia que dilacera a continuidade do enunciado e repercute-se na hora de traduzir, obrigando o tradutor a escolher seu campo: sourcier ou cibliste8. Não pretendemos afirmar que a abordagem genética de documentos de processo permitirá ao geneticista-tradutor de desvendar o quê o escritor quis dizer. Parece-nos que ela permite, somente, constatar o quê ele não quis dizer e que está atestado nas rasuras que modificam o já escrito. Visando fazer algo, dar forma, criar efeito. O acesso a essa parte oculta, labiríntica, da escritura alheia, pode auxiliar o tradutor na criação do seu próprio holograma.

Prosseguindo no caminho de Benveniste, procuramos analisar a performatividade de enunciados escritos em devir. Para caracterizar esse objeto passamos a usar o sintagma protoenunciado cunhado a partir da palavra prototexto e seguindo a inovação lexical da colega Isabel Faria de Lima com o termo protopersonagem. No intuito de afinar o conceito do que já tínhamos caracterizado como terceiro texto, podemos dizer que, no protoenunciado, estão circunscritas as formas lingüísticas que constituem o terceiro texto9.

Enquanto o enunciado publicado revela que houve ato de linguagem, a abordagem genética do protoenunciado, mesmo se não permite sua total reconstituição, possibilita, nas marcas desta marca, reencontrar o movimento de uma escritura. Esse movimento evidencia o que Cecília Almeida Salles chama de tendências e que o escritor seguiu no palimpsesto das consistências de suas diversas campanhas de escritura. Essas tendências revelam o fazer do escritor na sua procura de uma "espécie de rumo vago que direciona o processo de construção se sua[s] obra[s]". (SALLES, 2004, p. 28)

Consideramos o protoenunciado como discurso, isto é invenção de pensamento, segundo o define Meschonnic. Nessa invenção de discurso, em devir, o geneticista apreenda não o que está dito mas o que está feito ao dizer. Isto é, ele não se limita a descrever, mas procura entender como o escritor faz, na sua língua e à sua língua, para criar. É essa descoberta, revelada pela crítica ao processo que nos auxilia na tradução.

No fazer singular da criação nasce a forma que gera o efeito e é nessa ação, da forma para o efeito, que se encontra o performativo. O estudo da performatividade do protoenunciado parece-nos um ponto nevrálgico propiciado pelos estudos genéticos, a ser utilizado, de forma igualmente performativa, no campo da tradução literária. Nesse embasamento, podemos seguir a linha de Meschonnic segundo o qual não se deve traduzir o que um texto diz mas o que ele faz. Em sintonia com o escritor-tradutor francês está o tradutor-ensaísta português João Barrento que escreve

O essencial desse processo [de tradução] é o da reaproximação do status nascendi do texto (do gesto do dançarino em Kleist), sempre impossível de reconstituir, mas sempre (precária, mas insistentemente) reconstituído em cada acto de leitura – ou em cada tentativa de tradução. Esse «movimento», se conseguido, levará à apreensão daquele estrato envolvente e determinante que na língua de chegada corresponderá «à forma nova, feita para ela» (Alberto Pimental), do texto-outro, ou ao ritmo próprio do texto traduzido (Henri Meschonnic) (BARRENTO, 2002, p.61)

No Brasil, na emulação dessa linha performativa da crítica genética, aberta, entre outros por Philippe Willemart e Cecília Salles, está o livro Escrever sobre escrever, de Claudia Amigo Pino e Roberto Zular, que investiga a noção de performativo nas práticas de escrita. Isto é a transformação do material linguístico em linguagem literária, em literatura. Está marcada, nessa transformação, a passagem do enunciado performativo como simples ato de linguagem para o enunciado performativo como ato de criação. Nasce então uma forma, revelada por um fazer singular cujas práticas o geneticista procura entender.

A forma — dizem Claudia Pino e Roberto Zular — seria a possibilidade de um ato de fala significar para além do que ele diz. Como se os sucessivos atos de escrita configurassem uma constelação de relações que traz a marca desses atos, mas não se reduz a eles. Nessa visão do universo poético, a ênfase não recai sobre a multiplicidade de atos, mas no ato de configuração formal dessa multiplicidade em um objeto, o poema. (PINO, ZULAR, 2008, p.70-80)

Parece-nos que essa descrição pode ilustrar o princípio do holograma. Por outro lado, podemos estendê-la à narrativa em geral cujo objeto, o texto, passa também por esse processo e tem a mesma visada: fazer o sentido transbordar. Quem lê não imagina um prototexto, mais sente seu efeito. O texto traduzido, deve reproduzir tal sensação, como resultado de um (re)fazer, da procura de uma (re)configuração da multiplicidade semântica em um único objeto: o texto traduzido publicado. Este, por sua vez, deve funcionar como holograma. Assim, uma recriação elaborada sem o acesso prévio às etapas da configuração formal inicial, parece-nos amputada. E, nessa falta poderíamos ver um dos motivos que sustentam a avaliação sempre suspeita de uma tradução. O beneficio dessa passagem pelo prototexto parece atestado na seguinte prática de Umberto Eco. Numa entrevista concedida a Irène Fenoglio, ele diz ter usado, na gênese de O pendulo de Foucault um programa de computador para organizar o quadro (35 páginas) das estruturas narrativas e tê-lo enviado a seu tradutor inglês com uma recomendação: "fais attention, parce que les rapports temporels sont ceux-là, peut-être les as-tu perdus de vue, c'est possible, mais le lecteur doit en être averti d'une façon subliminale, à travers l'emploi des temps verbaux". (FENOGLIO, 2007, p. 183). Concluímos que, sem a consulta dessa parte do prototexto, o tradutor corre o risco de amputar uma parte do holograma original recriando um original "aleijado", não a nível superficial do semântico, mas a nível mais profundo que Eco qualifica de subliminal, e que é imprescindível por fomentar o efeito. É nesse sentido que o escritor francês Pascal Quignard afirma

Le lecteur qui saisit un livre est dans l'incapacité de pressentir la métamorphose qui lui a donné le jour [...] Sans doute peut-il évoquer celui qui l'écrivit, s'interroger sur ce qu'il prétendait dire etc., mais seul le liber, l'opus est questionné, à l'extrême rigueur le scriptum: non la scriptio, non la contingence et la chimère de l'opératio10. (QUIGNARD, 1997, p.124)

Quignard confirma, assim, o dizer de Umberto Eco, ao afirmar que é na operatio, isto é, na ação de um poder que provoca um efeito, que se localiza o subliminal. Por sua vez, a recriação tradutória, para conservar a integridade do efeito inicial, precisa passar por essa operatio que ela hospedará na sua operatio própria. Desse modo, parece-nos possível dizer que traduzir, também é fazer. No entanto, no seu estudo do manuscrito, o geneticista não apontará a totalidade das práticas de um autor, somente facetas, por essas práticas ultrapassarem o limite do manuscrito. No conto estudado, o autor, nas várias campanhas de escritura, trabalha principalmente a reestruturação textual, diríamos a fragmentação do escrito. Ele burila o agenciamento da forma lingüística já escrita. Constam poucos acréscimos manuscritos e as substituições lexicais são quase inexistentes. O trabalho de criação concentra-se na procura de uma organização espacial, de uma forma a dar ao já escrito. Ele segue "o rumo vago de um movimento" idôneo na alternância de dois tipos de narradores e de dois gêneros textuais – fluxo de consciência ou monólogo interior e diário.

O que se deve compreender no protoenunciado do conto de Caio F.? Não as palavras, mas a realidade, não somente à qual remetem, mas a realidade que nela encerra-se e as faz significarem. A realidade interior, portanto inacessível. Como já o dissemos, não existe outro meio de dizer uma realidade não‑lingüística sem o recurso ao lingüístico. No entanto, vimos que uma parte da narrativa do conto é constituída de monólogo interior, remetendo, portando, à linguagem do pensamento, que não necessita do lingüístico. É um dito para si, supostamente inacessível, pois não concretizado na escritura. Eis o faz de conta, a técnica narrativa do escritor alternando dito para si e escrito para si.

Il existe définitivement une tendance particulière à réduire les phrases et les expressions; le prédicat et les parties de l’expression qui y sont rattachées sont retenus, alors que le sujet et les mots qui font partie de la même expression sont omis. Une telle primauté des prédicats dans la syntaxe du langage intérieur devient apparente [...] avec une constance rigoureuse [...] de telle manière qu’à la fin, en utilisant la méthode d’interpolation, nous devrions supposer que la principale forme syntaxique du langage intérieur est la pure et absolue primauté des prédicats.(VYGOSTKI, 2002, p. 365)

Estrutura complexa de uma escritura íntima que não sai do espaço da criação em processo, já que qualificada de "anotações". Com efeito, as várias camadas de escritura redundam em modular o grau de intimidade conferido ao enunciado. O fazer praticado na versão 1 resulta no feito da versão 2 à procura de uma técnica narrativa que se desenvolve sem a intervenção de um narrador. Assim, o narrador, transforma-se em um "eu" que já se dissolve em "ele", para logo deslizar em "nos", abrangendo as três instâncias, que, no entanto, são implícitas, pois sempre graficamente omitidas. Este fazer redunda assim num efeito que catapulta o leitor no pensamento da personagem, isto é, na virtualidade de um espaço inacessível. E, logo em seguida, no espaço mais íntimo consentido à exteriorização da palavra interior: o diário, um escrito para si, desta vez não virtual, mas normalmente secreto e mantido inaccessível. Ambos os espaços supõem uma entrega e um desnudamento totais de quem escreve. O leitor encontra-se encurralado numa intimidade narrativa que não o deixa escapar. Efeito primordial que há de ser perpetuado na tradução. A textualidade, na primeira versão, mostra grandes parágrafos narrativos intercalados de fragmentos de diário. O trabalho de reorganização textual concentra-se em desfazer o cumprimento dos parágrafos de monólogo para precipitar as alternâncias narrativas e não deixar o leitor descansar numa continuidade textual. O fazer praticado na versão 2 esmera o feito à procura do ritmo idôneo na alternância monólogo-diário, ampliando a fragmentação e a disseminação do primeiro, introduzindo poucos acréscimos e deixando o segundo inalterado:

La première et la plus importante particularité du langage intérieur est son étrange syntaxe. [...] Cette particularité est démontrée par la fragmentation apparente, la discontinuité et la contraction du langage intérieur quand on le compare au langage extérieur.(VYGOSTKI, 2002, p.363)

Para dar um exemplo, examinemos a seqüência de números que percorre a primeira versão do conto de Caio Fernando Abreu. Nesse conto, o autor, nas várias campanhas de escritura, trabalha principalmente a reestruturação textual, diríamos a fragmentação do escrito. Ele burila o agenciamento da forma lingüística já escrita. Constam poucos acréscimos manuscritos e as substituições lexicais são quase inexistentes. O trabalho de criação concentra-se na procura de uma organização espacial, de uma forma a dar ao já escrito. Ele segue "o rumo vago de um movimento" idôneo na alternância de dois tipos de narradores e de dois gêneros textuais — fluxo de consciência ou monólogo interior e diário. A redistribuição do escrito só concerne ao monólogo interior.

O fato de ser datilografado, portanto sem auxílio do recurso copiar-colar do computador, obriga o autor a numerar os fragmentos de texto que ele almeja deslocar, tentando, provavelmente, visualizar como seria a forma de cada nova organização.

Na página 1 da versão 1, numa primeira campanha de releitura, o escritor-scriptor circula várias porções de texto e, com traço, lhes atribui uma nova localização. Esse procedimento é limitado ao primeiro parágrafo. É provável que o autor tenha percebido que prosseguir nessa prática redundaria em um excesso de traços podendo levar à confusão. Parece-nos que ele passa a adotar um sistema de colchetes e de números para reformular a ordem do escrito sem prejudicar uma visão nítida do texto. Nessa primeira versão, todas as substituições ocorrem no fluxo da escritura mecânica; as marcas manuscritas limitam-se aos números e ao acréscimo textual na última lauda. Esses rastros gráficos, não são formas verbais enunciativas, contudo, participam da configuração enunciativa, portanto da criação do efeito. Identificamos três tipos de números, diferenciados pelo tamanho e a localização. Eles parecem confirmar a dificuldade de visualizar a nova disposição textual. À cada campanha de releitura, eles tornam-se menores e passam a ocupar a margem direita da lauda. Na terceira campanha, sobrepõem-se a números já existentes. Esse uso de recursos não lingüísticos, traços, colchetes, números, exemplificam o ato performativo criativo, produto do diálogo interior em que o escritor procura visualizar o resultado de possíveis alterações e o scriptor, propondo possibilidades que vêm à tona, provoca nova reestruturação.

O bloco narrativo inicial vem sendo esculpido e fragmentado até uma redistribuição total da narrativa, orquestrada pelas datas do diário. A procura dessa configuração formal do já escrito sugere a busca de um equilíbrio rítmico entre as duas formas de enunciados, criando, assim, um diálogo intra-textual entre dois diálogos — o que Valéry chama de diálogo de diálogos. Essa mise en abyme, percorre a totalidade do conto, a começar pela mudança de título que, de Outra estória de peixes, passa para Anotações para uma estória de amor. Essa substituição mostra que o autor segue uma nova tendência; a introdução da palavra anotações remete ao ato de escrever. Escrever para não esquecer, isto é, fazer lembrar, para fazer apontamentos, para esboçar um escrito futuro, para anotar um diário, entre outros. Remete também a uma escritura do fragmento. Na versão 1, as três primeiras páginas atestam a alternância narrativa com predominância do monólogo interior11, as duas últimas páginas concentram o diário. Como nas duas versões seguintes o autor trabalha a reconfiguração formal, podemos intuir que o efeito linguístico almejado já foi satisfatório, mas que precisou ser complementado, e confirmado, por uma forma capaz de estilhaçar esse efeito. Daí a fragmentação textual até chegar à versão 3. No entanto, apesar da descontinuidade visual ligada ao fragmento, o ritmo de leitura recria uma continuidade narrativa, alternada ou paralela, em que pairam incomunicabilidade, solidão, desamor, abandono, temas recorrentes na obra de Caio Fernando Abreu. Redunda nesse sentido a epígrafe de Clarice Lispector cuja última palavra, o adjetivo "diária", remete diretamente à forma do enunciado. A construção da forma destaca e reforça o verbo "inventariemos" que, na terceira versão, após rasura de substituição, deve passar a iniciar o conto. Assim, está enfatizada a forma do inventário que sustenta o conto, assentada a idéia de anotações e, portanto, de fragmento.

Poderíamos dizer que o scriptor destrói a integridade textual da versão 1, principalmente o longo primeiro parágrafo. No entanto, essa destruição não é aniquilação e sim reconstrução. Ela poderia ilustrar o que Ph.Willemart chama de inconsciente genético, isto é, todas as informações que formam a memória literária e que são registradas por escrito, podendo ser consultadas a qualquer momento. No entanto, quando não são retomadas, acabam por se aproximar às da memória e ficam esquecidas da mesma forma. A partir desse esquecimento ou rejeição no passado do manuscrito, nasce o inconsciente genético, ou da gênese, cuja finalidade é diferenciar esses tipo de informações. Neste caso um mecanismo artístico, já experimentado no primeiro romance do autor Caio Fernando Abreu, Limite branco (1967), cuja arquitetura textual segue o mesmo processo de alternância enunciativa entre narrativa e diário. É uma prática anterior a este conto inédito escrito em 1970.

"O termo `fragmentar´ implica também a destruição de um déjà-là, e não sua aniquilação, porque, como um filme, será remontado em seguida pelo scriptor". Parece-nos imprescindível citar na íntegra as palavras de Willemart que fazemos nossas por serem altamente ilustrativas do que acontece nestes documentos de processo

O que o scriptor vai fragmentar? Justamente o que o escritor e seus contemporâneos sabem e vivem: uma tradição literária, um modo de escrever, a espessura das personagens, uma paginação padrão, uma certa visão do mundo, as estruturas socioeconômicas, os sonos e as técnicas que circulam, etc.(WILLEMART, 1995, p.59)

No seu fazer, que origina a forma textual, o escritor procura fragmentar a própria linguagem num uso alternado. Dialogam, de um lado, uma linguagem interior, dirigida a si mesmo, quase egocêntrica, altamente sensorial, com a estrutura peculiar do fluxo de consciência; do outro lado, uma linguagem exterior, contudo não voltada para a comunicação já que circunscrita ao diário, isto é, um escrito para si mesmo. No entanto, esta intimidade narrativa é toda dedicada ao outro, designado por um "ele". É uma interioridade que grita sua dor. Que quer desesperadamente comunicar. Essa passagem por uma grande dor, e a sua metamorfose expressiva no enunciado, pode ser sentida na leitura consecutiva das três versões. É o movimento que deve conduzir a tradução e ser refeito no texto traduzido

Por ser inédito, não temos versão publicada do conto. Então, em nossa pesquisa, que visa uma publicação, baseamo-nos, entre outros, nesse estudo genético para fixar o texto. Sobretudo a versão 3, a única a portar a assinatura do autor, pela qual, segundo Gérard Leclerc (Le sceau de l'œuvre), ele reivindica a responsabilidade do enunciado.

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1  Espaço de Documentação e Memória Cultural, inaugurado em dezembro de 2009 e que funciona na Biblioteca central da Pontifícia Universidade do Rio Grande do Sul.

2  Entre 1969 e 1976 foi criada a coleção « Les Sentiers de la Création» pela editora Skira, onde “desvendaram-se” Barthes, Caillois, Aragon, Elsa Triolet, Prévert, Le Clézio, Char, Paz, Ponge, Asturias, entre outros. In, Grésillon, Almuth, Éléments de critique génétiques , p.3.

3 Tradutor e professor, fundador do magistério intitulado«Theory and Practice of translation» na Middlesex University de Londres, em meados dos anos 1990; responsável, no programa europeu Ariane, da direção da rede de centros de formação profissional, “Le traducteur, lecteur et écrivain”, atualmente diretor do British Centre for Literary Translation (BCLT).

4  “C´est la comparaison avec ce procédé du blason qui consiste, dans le premier, à mettre un second «en abyme»”, André Gide, Journal 1889-1939. «Pléiade», 1948,p.41. (DALLEBACH, 1977, p.15)

5  “O termo performativo será usado em, uma variedade de formas e construções cognatas, assim como se dá com o termo imperativo. Evidentemente que esse nome é derivado do verbo inglês to perform, verbo correlato do substantivo ação, e indica que ao se emitir o proferimento está se realizando uma ação, não sendo, consequentemente, considerado um mero equivalente a dizer algo“. (AUSTIN,1990, p.25)

6  Fotografia que produz uma imagem tridimensional e que contem informações sobre a intensidade e a fase de radiação refletida ou difratada pelo objeto fotografado (Houaiss). É interessante relacionar holograma com holográfo (totalmente escrito pela mão do autor).

7  “Se a tradução de um texto for estruturada como um texto, ele funciona como um texto, ele é escritura de uma leitura-escritura, aventura histórica de um sujeito. Ela não é transparente em relação ao original”. (MESCHONNIC, 1973, p.307) (nossa tradução)

8  Sourcier: que leva o leitor até a fonte; cibliste: que leva a fonte até o leitor.

9  Paul Ricœur disse, no seu livro Sur la traduction (Paris: Fayard, 2004), que se existisse um  terceiro texto entre o texto fonte e o texto de chegada, ele poderia ser um suporte referencial na critica da tradução. Parece-nos que este espaço vazio pode ser preenchido pelo prototexto do texto traduzido, que passa a funcionar como o terceiro texto.

10  Scriptum: o escrito; scriptio: processo de textualização; operatio: ação e um poder que provoca um efeito (sentido moderno-XIV)

11  O monólogo interior não deixa de ser um diálogo consigo mesmo, assim como o é o diário; o primeiro de registro oral, o segundo de registro escrito. Em ambos o narrador é ausente dos fatos narrados, não há informações de contexto e o leitor é diretamente projetado na intimidade alheia.